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A HARPA EMUDECIDA / Gasparino José Romão

Já é tarde, eu preciso pôr um ponto final nas tergiversações a que me propus, no retrospecto em que fui buscar, numa viagem ao ontem, alguma lembrança para registrar do meu passado. Ao longe, o crepúsculo já encobertou a cadeia de montanhas que se diluiu nas sombras que descem e, pouco a pouco, vão amortalhando a terra, atropelando os derradeiros raios do sol e, à medida que a luzes da minha cidade vão acendendo, aquela monotonia silenciosa das tardes de outono vai invadindo a alma da gente, mesclando-se à solidão das próprias horas crepusculares.

Olhos fechados, eu me tranco, na pequenez das minhas emoções, para olhar o mundo da minha saudade numa visita às plagas solitárias que deixei lá atrás e, enquanto desfio o meu rosário de contas de lágrimas, na prece com que saúdo o morrer do dia, vou relembrando os amigos que ficaram na trajetória da vida, tombados antes de mim, à margem dos caminhos. Eu quero nos meus versos, poder cantar o soluçar do vento, vergastar os arvoredos farfalhando e inebriar-me no misticismo ‘‘da magia do entardecer’’, aonde ‘‘os  gênios se encarregam de uma festa e os pirilampos são estrelas ambulantes’’.

Que ‘‘o poeta, antes de tudo, é um sonhador’’, é o que dizem aqueles que não compreendem a sublimidade da divina Arte. Entendem que o ser humano, na sua normal configuração da vida, para compor uma música, escrever uma poesia ou debuxar numa tela uma paisagem qualquer, deva estar dotado de dons especiais que, tirando-o do número de normais, colocam-no na constelação dos que, sobrenaturais, portam-se além das potencialidades humanas. Nós vivemos sonhando acordados mas, é preciso fazer conta desse tempo, pois Deus nos exige sempre uma prestação de contas.

Incontido na saudade do tempo, eu parei para magnificar-me no esplendor de beleza tamanha e, por mais que tentassem, não lograram deter-me na vontade indômita de parar um instante e, como impelido por força desconhecida,  fui mirar confuso    o espelho d’ água e sondar, na inconsciência do impulso, o mistério voluptuoso da beleza largada no ermo do caminho. Naquela beleza que não se tem como contar, eu vi a alma, talvez de um mistério divino ou, quem sabe, num retorno no túnel do tempo, eu haja volvido às maravilhas ficadas lá atrás, na infância ou na juventude, em que a gente nem sabe ser feliz.

No êxtase do encantamento do instante, fugindo do momento de agora, olhos semicerrados, eu fui buscar na distância do tempo, perdida na visão do nada talvez, a lembrança das quimeras da infância que eu carreguei comigo, absconsa nos confins da alma, como a cicatriz da ferida do tempo na dor que só agora é sentida, de perceber não haver vivido quando deveria viver, aproveitando no tempo certo a imagem, que só agora se vislumbra tão clara. Então fechei os olhos pra retê-la viva e memorar no amanhã, se houver amanhã, a visão deste momento.

Quando abri os olhos, senti não haver percebido nas bordas do pequeno poço retentáculo de um mistério ali postado, umas poucas flores ao nascer do Sol desabrochadas e brotadas sem que se as plantassem mas, nascidas como por encanto, como eu, das manhãs da minha terra.

Serviço:

A Harpa Emudecida
Gasparino José Romão
Scortecci Editora
Poesia
ISBN 978-85-366-1834-0

Formato 14 x 21 cm - 120 páginas
1ª edição - 2010

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