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A MULHER OLHANDO A MENINA / Maristela Veloso Campos Bernardo

As mãos de meu pai pendiam de seus longos braços quando ele caminhava, e suas veias ficavam saltadas formando um desenho azul tal como um rio e seus afluentes. Elas pegavam no laço, enlaçavam os cavalos, novilhos, bois ou touros na hora da marcação com os ferros em brasa para cunhar, nos pelos dos animais, um RC de Ruy Campos. Quando algum peão não se aligeirava, ele estava a ensinar o ponto certo onde segurar o laço, o modo de lançá-lo sobre o animal no golpe certeiro para derrubá-lo. Fazia isso de maneira silenciosa, com pouca fala, com o olhar atento.

As mãos, com golpe certeiro no uso do perfurante de metal, comandavam o furo nos sacos de estopa para examinar seus grãos de cereais; elas se prensavam e, em movimentos circulares, separavam as palhas dos grãos de arroz; em conchas, amaciavam o fumo para o cigarro e, com os movimentos dos dedos no canivete afiado, refinavam as palhas que eu escolhia a seu pedido no paiol. Entre tantas selecionava as mais macias de dentro das espigas de milho. As mãos dirigiam o jipe, as mãos erguiam o chapéu da cabeça em cumprimento aos passantes da estrada que iam e vinham a pé ou a cavalo. Elas se espalmavam sobre seus olhos para fazer sombra e amenizar o sol quando olhava o gado no pasto.

Suas mãos me erguiam do chão e me levavam para seus braços. Foi, pois, insuportável, naturalmente chocante e repulsivo, senti-las frias, cruzadas, inertes sobre seu peito quando morto: o maior castigo que a vida até então me dera. Eu tinha 11 anos. Maristela diz, na Introdução deste livro, que escrever sobre seu pai - falecido quando ela contava apenas 11 anos - surgiu da vontade de encontrar-se consigo mesma: “Pude reavivá-lo e restabelecer-me com sua presença ausência”. E esta revisão levou-a retomar outros lados de sua meninice; levou-a a falar da mãe, da escola... A presença-ausência do pai fez com que sondasse sua vida por meio da lembrança, também, de outras pessoas.

E, fundamentalmente, das lembranças daquele espaço, de alguma forma mágico, de sua infância: a cidade de Major Prado, no interior de São Paulo. E a sua escola: que manancial para pensarmos não em uma história da Escola Brasileira, mas em histórias e histórias das escolas brasileiras! Enquanto lia suas Memórias, eu me percebia quase que invejando a dedicação e o prazer de Maristela ao contar os fatos, descrever pessoas e situações. A sensação de leveza, em certo momento, me fez pensar que a sua infância, a sua escola tinham sido mais coloridas do que as minhas. Pude ver, entretanto, como o tom de leveza que impregna estas memórias vem não só dos fatos narrados, mas, principalmente, do olhar adulto, distante, amoroso, mas crítico - muitas vezes irônico - de um narrador que pôde resgatar alegrias e perdas, dando-lhes a cor perpassada pela consciência de que se pode escrever sobre a infância não apenas nostalgicamente, pelas saudades de um tempo que não volta mais, como dizia Casimiro de Abreu.

Pode-se escrever, por ser esse tempo quase um espaço a ser revivido em busca da compreensão de nós mesmos, dos outros, e do mundo que nos cerca. Esse passado pode ser lido hoje nas articulações entre costumes, valores... Diz Riobaldo, narrador de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: O que lembro, tenho. As narrativas de Maristela poderão deslocar os leitores para espaços próprios de lembranças, num reconhecimento do já tido e - quem sabe? - do nunca tido.
Malu Zoega

Nascida em Major Prado, distrito de Araçatuba, na década de 1940, alfabetizou-se na Escola Mista de Major Prado. Fez seu curso secundário no Colégio Nossa Senhora Aparecida – dirigido pela irmãs do Sagrado Coração de Jesus. Cursou a PUC-SP onde fez a pós-graduação, onde realizou seu doutorado. Foi professora da UNESP, sempre formando professores. Casou-se em 1965 e tem um casal de filhos. Apaixonou-se pela leitura quando criança e, na adolescência, copiou sua mãe que lia os grandes romances. Um deles O Egípcio, que foi proibida de ler, aos 13 anos, por ser considerada ainda criança pela autoridade materna. Contentou-se, então, com José de Alencar. Hoje lê os clássicos, sua paixão, mas não deixa de lado os contemporâneos brasileiros. Começou a escrever suas memórias em 2006, muito mais para fazer uma catarse pela perda prematura de seu pai. Continuou a escrever depois disso. Hoje constrói seus contos, alguns deles publicados em "Encontro Pontual - Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas", 2010.

Serviço:


A Mulher Olhando a Menina
Maristela Veloso Campos Bernardo
Scortecci Editora
Memórias
ISBN 978-85-366-1987-3

Formato 14 x 21 cm - 176 páginas
1ª edição - 2010

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