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DOIDEIRA ACORDADA DA NOVA REALIDADE

Quando criança – isso no Ceará dos anos 1960 – pesadelo fazia parte do sono de menino. Lendo sobre o assunto encontrei: faz parte de um “estágio regular” do processo do desenvolvimento. Solução, na época: acender a luz do quarto e correr veloz para a cama da mamãe. Quase sempre resolvia. Na verdade - os pesadelos - nunca acabam e vez por outra, nos pegam pelo pé. São descritos como “sonhos vívidos”, de conteúdo perturbador e trágico, que costumam causar sensações negativas e ruins. Os meus pesadelos – todos, sempre - começam e terminam em brigas, chutes e cabeçadas certeiras. Já andei procurando saber sobre o assunto e a explicação dada foi - quase - uma sentença: Você tem dificuldade em lidar com os problemas atuais! Aceitei. Depois de uma boa luta feroz - repleta de golpes mortais - costumo acordar relaxado, disposto e com a endorfina em dia. Hoje lendo a coluna do jornalista Hélio Schwartsman, sobre o livro “O peso da natureza” ("The Weight of Nature"), do neurocientista Clayton Page Aldern fui obrigado a concordar - assustado - com a mensagem apocalíptica da obra. O livro, que analisa impacto da mudança climática em nossos cérebros, prevê homem mais violento, burro e ansioso. Gostei da chamada! Diz o livro: “Um mundo em rápida transformação produzirá um cérebro também afeito (acostumado, habituado) a mudanças, por vezes súbitas e dramáticas... O calor nos torna mais violentos! O aumento de doenças transmitidas por animais devido ao aquecimento global já está no radar de todos. O habitat de mosquitos e outros vetores será ampliado. A mudança climática, diz o autor, está também dentro de nós. O calor nos torna mais violentos e faz piorar nossa performance em tarefas cognitivas. Até os árbitros esportivos cometem mais erros (obrigado a concordar, plenamente) quando a temperatura sobe. Até a temível ameba comedora de cérebros, que já aparece em lugares onde antes não aparecia... O retrato, segundo Clayton Page Aldern, como deu para ver, é assustador. Temo que as minhas lutas noturnas, em breve, perderão lugar para a nova realidade. Ou, finalmente, dormirei em paz, mais violento, burro e ansioso. 

João Scortecci
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1989: QUIRINO CARNEIRO RENNÓ, JOÃO DO PULO E O GUIA DE ARBITRAGEM DE ATLETISMO

Conheci o coronel Quirino Carneiro Rennó no ano de 1976, quando soldado 1.148, da CCS-PT, do 2º Batalhão de Guardas, Parque Pedro II, na cidade de São Paulo. Rennó era, na época, o subcomandante do batalhão. Além de militar, trabalhava com arbitragem na Federação Paulista de Atletismo. Foi o “descobridor” do atleta recordista mundial do salto triplo, João do Pulo (João Carlos de Oliveira, 1954 – 1999). Foi Rennó, no ano de 1972, quem o levou para o 2º Batalhão de Guardas, como soldado, depois, cabo, acreditando estar diante de um futuro campeão. Na capital, João do Pulo treinou no São Paulo Futebol Clube e depois foi para o Clube Pinheiros, onde encontrou o treinador Pedrão (Pedro Henrique de Toledo) que o transformou num atleta competitivo e vencedor. Em 5 de outubro de 1975, aos 21 anos de idade, nos Jogos Pan-Americanos da Cidade do México, deu o salto triplo que o consagrou, batendo o recorde mundial da categoria: pulou 17,89 m. O recorde de João do Pulo só viria a ser superado 10 anos depois, pelo americano Willie Banks, com a marca de 17,97 m. Em 1982, aos 27 anos de idade, João do Pulo – apelido dado pelo atleta Benedito Rosa Preta –, sofreu um terrível acidente de carro na Rodovia Anhanguera, onde acabou, infelizmente, tendo sua perna direita amputada. Impossibilitado de competir, candidatou-se a deputado estadual por São Paulo, tendo sido eleito, em 1986, e reeleito, em 1990. Desistiu de ser político e foi ser empresário, sem sucesso. Tentou, ainda, voltar para a política, em 1998, mas não conseguiu. João do Pulo morreu no ano seguinte, no dia 29 de maio de 1999, um dia depois de completar 45 anos de idade. Em 1989, já editor de livros, no endereço da Rua Teodoro Sampaio, 1.704, loja 13, recebi – inesperadamente – a visita surpresa do Coronel Quirino Carneiro Rennó. “É você, soldado?” Trocamos continências e – durante uma tarde inteira – papo sobre o João do Pulo, o acidente de carro, o 2º Batalhão de Guardas e, por fim, a publicação do “Guia de Arbitragem de Atletismo” (Q. C. Rennó, 1989, 112 páginas). Hoje – procurando um livro de outro autor, também do ano de 1989 –, encontrei um exemplar do “Guia”. Sentei-me no tempo e lá fiquei, perdido no ano de 1976, o ano que não terminou.

João Scortecci

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MELATONINA E O MITO DO NORMAL

Eu durmo cedo. Deito e durmo. Ligo o radinho de pilha e apago. Adoro um chiado, uma estação fora de sintonia, notícias repetidas e alguns programas esportivos. Três coisas me fazem - ligeirinho – mudar de estação: A Voz do Brasil, boca de sindicalista e médico falando de doença. Fora isso: vale tudo: gente pedindo dízimo, vendendo lugar no inferno, político falando e não dizendo nada e economista fazendo previsões. Não dá! Acordo cedo: 4 da manhã, no máximo, e fico enrolando na cama ou no sofá da sala, até as 5. Funciona assim: quando já escutei de tudo fico com o Paulo Galvão, no CBN Madrugada ou no Band Coruja, com o Pedro Rafael. Lendo sobre “Truques simples para dormir bem”, encontrei uma dica que – confesso – desconhecia: massagem nos ouvidos! Dizia a matéria: “Pesquisas mostram que colocar os dedos cerca de 1 cm atrás do meio da orelha e manter a pressão nesse ponto por 10 a 20 segundos - pode - ajudá-lo a adormecer!”. Pode! Desliguei o radinho de pilha, apaguei da cabeça o cortisol do dia, abracei o travesseiro de melatonina e iniciei – confiante - o exercício da massagem nos ouvidos. Dormi em segundos. Até ai nada de novo. Já disse: deito e durmo, sempre. No exército – isso nos anos 1976 – aprendi técnica de programar o cérebro para dormir um determinado número de horas - ou mesmo minutos - e acordar pontualmente. Funciona. Hoje acordei com a voz do Pedro Rafael, nos ouvidos. Estranho. E a técnica de “bolinar” as orelhas? Não sei se funcionou ou não. E o que é pior: não registrei na consciência a hora que catei na cabeceira da cama o radinho, liguei no Band Coruja e parti para o céu. E o que é pior: durante o sono - ainda - troquei as pilhas do radinho! A cartela nova, com 4 pilhas Duracell, estava violada e com duas pilhas a menos. Desconfio que o culpado seja o livro que estou lendo “O mito do normal” do Gabor Maté. Ontem li algo sobre o medo infantil que tenho de virar “abóbora” na virada do dia. Diz o livro: algo que deve ter acontecido na infância, algo assim. Um detalhe, insignificante, talvez: acordei com as orelhas doloridas. Dor conhecida, do tempo de menino, da época que minha mamãe Nilce puxava e torcia, com força, as minhas orelhas, sem piedade. Dizia, sempre: Você é um menino danado! Excesso de cortisol ou, provavelmente, imperatividade aguda e  doentia, de um sonâmbulo desativado. 

João Scortecci       

     


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WALT WHITMAN E O POEMA SEM-FIM

Versos imitando os ritmos da fala! O poeta, jornalista e impressor estadunidense Walt Whitman (1819 – 1892) é considerado por muitos como o pai do verso livre. Entre 1842 e 1844, editou o jornal diário Aurora e o Evening Tatler. Durante um ano, escreveu para o Long Island Star, tornando-se – em seguida – editor do The Brooklyn Daily Eagle, posição que ocupou de 1846 a 1848. Editou também o The Brooklyn Freeman, entre 1848 e 1849, e, no ano seguinte, montou uma tipografia e uma papelaria. Em julho de 1855, publicou a primeira edição de Leaves of grass (Folhas de relva), impressa na gráfica Rome Brothers de Brooklyn, de propriedade dos gráficos e imigrantes escoceses Andrew e James Rome e cujos custos de edição Whitman pagou. Leaves of grass é considerado um marco na literatura universal. Os versos dos poemas são livres, longos e brancos, imitando os ritmos da fala. Uma curiosidade: o livro teve oito edições e foi revisto e ampliado várias vezes. Uma obra – eternamente – inacabada! A primeira edição foi publicada em 1855, sem o nome do autor e com apenas 12 poemas e um prefácio. A segunda edição ganhou o seu nome na capa e um total de 32 poemas. Entre eles, o poema "Canto de mim mesmo". A terceira edição – já com 154 poemas – foi publicada em 1860. Em 1861, a editora foi à falência, e a obra de Whitman foi pirateada. Em 1867, com oito poemas novos, saiu a quarta edição de Leaves of grass. A quinta edição foi publicada em 1870, com uma segunda tiragem em 1971, que incluía "Passagem para a Índia” e mais 71 poemas, alguns dos quais inéditos. Em 1876, foi publicada a sexta edição, em dois volumes. A sétima edição, publicada em 1880, não foi distribuída, pois foi recolhida por ordem do promotor público, que a julgou imprópria. Essa edição só foi retomada em 1882 e com a inclusão de 20 poemas inéditos. A oitava edição foi publicada em 1889. Quando Walt Whitman preparava nova edição do livro, morreu por causa de uma pneumonia, aos 73 anos de idade, em 26 de março de 1892. Vivi drama semelhante com o livro de poemas A morte e o corpo (1984). A cada nova edição – foram muitas – excluía poemas, incluía novos e reescrevia outros. Uma obra inacabada! Na quinta edição, frustrado e inconformado por não conseguir concluí-la a gosto, escrevi e publiquei na última página do livro uma nota de – quase – conformismo: “Dilema literário para não julgar. Fazer da vida o poema sem-fim.” Feito isso, confesso, encontrei uma passageira e inquieta paz. Ao longo de 50 anos trabalhando com livros, a máxima ganhou várias versões, entre as quais: “Viver é fazer da vida um poema sem-fim!” Mais recentemente, no ano de 2022, tornou-se – por enquanto, quem sabe – uma sentença de vida: “Faço da minha vida de livros um poema sem-fim.” 

João Scortecci

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ÉDER JOFRE E OS 5 ANOS DA SCORTECCI

Luta é luta! Quando menino, isso no Ceará dos anos 1960, o pau comia do nada, bastava um olhar estranho, uma cuspida certeira, uma entrada feroz na canela, uma pisada no sapato vulcabrás - engraxado no dia - ou, ainda, uma “pinada” na garota da vez, que o tempo fechava. As lutas daquela época – de rua e na escola - eram leais e respeitosas. Tipo Éder Jofre: punhos fechados e muito balanço nas pernas. Existiam regras! Não existia soco inglês, canivete, emboscada - dois ou mais contra um - e nem pau-ferro de jucá, amaciado no sebo de bode. Batíamos e apanhávamos com classe e lealdade. “Apanhei” uma única vez. O moleque - menor e ligeiro - chamava-se Madeirinha (apelido) e era bom de briga. Tomei um direto no olho que ficou roxo. Ficou a lição e na memória: detalhes daquela briga feroz. Perdi. Conheci o pugilista campeão mundial Éder Jofre (1936 – 2022), através do seu empresário imigrante lituano Abraham Katzenelson – isso nos anos 1970 – quando morávamos no mesmo prédio, em Santa Cecília, na Rua Frederico Abranches, 355, em São Paulo. Em 1982, quando abri a Scortecci Editora e ele - já aposentado - foi candidato a vereador pela cidade de São Paulo, nos reencontramos. Vez por outra íamos na feijoada do Star City, papear sobre boxe e sobre os bons tempos de luta-livre, do Telecatch Montilla. O lutador Rasputin – O malvado – era do pedaço e também - vez por outra - engrossava o caldo do feijão. Em 1987, quando do aniversário de 5 anos da Scortecci Editora, enviou-me ofício 509/87, de Voto de Congratulações, assinado pelo presidente da Câmara Municipal, na época, o Vereador Antonio Sampaio. Éder Jofre morreu em 2 de outubro de 2022, aos 86 anos de idade. Em sua carreira de pugilista profissional, lutou 81 vezes, com 75 vitórias, 52 por nocautes e apenas 2 derrotas. Quando “pedalo” no bairro de Santa Cecília, lembro-me do Éder Jofre, do empresário Abraham Katzenelson, elegante e de terno, da feijoada do Restaurante Star City (1953 - 2024), do gigante do Rasputin – O malvado - e do dia que - desavisado de tudo - quase apanhei feio do Éder Jofre. disse-lhe: “Eu só perdi uma luta! e foi para o Madeirinha!" Ele não gostou.  

João Scortecci


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DARWIN E O LIVRO MAIS CENSURADO E INFLUENTE DA HISTÓRIA

O naturalista, geólogo e biólogo britânico Darwin (Charles Robert Darwin, 1809 – 1882), célebre por seus avanços sobre evolução nas ciências biológicas estabeleceu a ideia que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum. Em 1859 publicou “A origem das espécies” e propõe a teoria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção natural e sexual, e a luta pela sobrevivência resulta em consequências similares às da seleção artificial. A obra foi publicada em Londres, impressa por John Murray, com tiragem de 1.250 exemplares. A edição se esgotou em um dia, e a Igreja reagiu violentamente. O assunto polêmico gerou artigos de jornais, sátiras e caricaturas que debochavam do britânico. Em 1860, saiu uma segunda edição, que também se esgotou em poucos dias. O livro “A origem das espécies” de Darwin provocou um escândalo na sociedade e foi rejeitado em colégios, bibliotecas do mundo e na comunidade científica. Há registro de que edições inteiras foram destruídas e queimadas. A teoria de Darwin – segundo a qual todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum, precisou de décadas para ganhar aceitação e reconhecimento da sociedade e da comunidade científica. Hoje, a teoria de Darwin é considerada o mecanismo unificador para explicar a vida e a diversidade na Terra. Pesquisa realizada no Reino Unido durante a Academic Book Week (2019) elegeu “A origem das espécies”, de Charles Robert Darwin, a obra censurado mais influente da história. Na lista dos 20 títulos censurados mais influentes da história – a título de curiosidade – aparecem: 1984 (George Orwell), Uma vista da ponte (Arthur Miller), Amado (Toni Morrison), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), Country girls (Edna O'Brien), Seus materiais escuros (Philip Pullman), Eu sei por que o pássaro engaiolado canta (Maya Angelou), O amante de Lady Chatterley (D. H. Lawrence), Ratos e homens (John Steinbeck), Direitos do Homem (Thomas Paine), Versos satânicos (Salman Rushdie), O apanhador no campo de centeio (J. D. Salinger), A cor púrpura (Alice Walker), As vinhas da ira (John Steinbeck), A metamorfose (Franz Kafka), Para matar um Mockingbird (Harper Lee) e Ulisses (James Joyce). Darwin, em seus últimos anos de vida, publicou outros livros polêmicos: “A variação dos animais e plantas sob a ação da domesticação” (1868), “A descendência humana e a seleção sexual” (1871) e “Expressão das emoções no homem e nos animais” (1872).

João Scortecci

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“DIA DAS LETRAS GALEGAS” DE ROSALÍA DE CASTRO E A MORTE

O dia 17 de maio foi instituído em 1963 como o “Dia das Letras Galegas”, quando se comemoraram os 100 anos de edição da primeira obra escrita em língua galega (língua ibero-românica ocidental de caráter oficial da Comunidade Autônoma da Galiza), “Cantares Gallegos”, da escritora espanhola Rosalía de Castro (Maria Rosalía Rita, 1837 - 1885). Nascida em Santiago de Compostela, capital da Comunidade Autónoma da Galiza, noroeste de Espanha, Rosalía de Castro é considerada a fundadora da literatura galega moderna. Escreveu tanto em prosa quanto em verso, empregando o galego e o castelhano. Sua obra esteve profundamente marcada pelas circunstâncias que rodearam sua vida, como sua origem, os problemas econômicos, a morte dos seus filhos e sua frágil saúde. Em 1863, em Vigo, cidade da costa noroeste da Espanha, o seu primeiro grande livro, "Cantares Gallegos", foi publicado por seu marido, o historiador galego Manuel Murguía (1833 - 1923), que geriu, sem a licença da esposa, a impressão de um “poemário”, que fixa o começo de uma nova era para a poesia galega e que foi a base do ressurgimento da literatura galega, numa época em que essa língua estava extinta como língua escrita. Em 1880, Rosalía de Castro publicou “Folhas Novas”, praticamente uma continuação de “Cantares Gallegos”. Em castelhano, publicou “La flor” (1857), “A mi madre” (1863), “En las orillas del Sar” (1884) e o romance “El caballero de las botas azules” (1867), obras marcadas pelo Romantismo literário. Rosalía de Castro passou os últimos anos da sua vida em Padrón, na província espanhola de Galiza, na "Casa da Matanza", que depois se tornaria casa-museu. A morte acidental do seu filho mais novo aos dois anos de idade e sua doença amargaram os seus derradeiros anos de vida. Morreu de câncer, em 1885, aos 48 anos de idade. Antes de morrer, pediu aos filhos que queimassem os trabalhos literários que, reunidos e ordenados por ela mesma, não foram publicados. Foi enterrada no campo-santo da Adina, na Galiza. Anos mais tarde, em 1891, seus restos foram transladados para o Panteão de Galegos Ilustres, no convento de São Domingos de Bonaval, em Santiago de Compostela. Entre os poetas - muitos pensam assim - há um pacto pós-morte: ““O que não for publicado ou ainda não concluído em vida, deve ser – literalmente – esquecido e queimado!”.  

João Scortecci


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OS POETAS LINDOLF BELL E PÉRICLES PRADE

Conheci o poeta Bell (Lindolf Bell, 1938 - 1998) nos anos 1980. Dizia sempre: “menor que o meu sonho não posso ser”. Quem nos apresentou foi o também poeta catarinense Péricles Prade, na época Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores. Disse-me: “Scortecci, hoje o Bell vai relançar no Spazio Pirandello o livro “As Annamárias”. Vamos?” Fomos! Eu, Péricles, Caio Porfírio Carneiro, Lauro Vargas e outros diretores da entidade. O Spazio Pirandello, Rua Augusta, 311, era no início dos anos 1980, ponto de encontro de jornalistas, escritores e intelectuais. Foi lá que conheci Loyola, Moacir Amâncio, Mario Prata, Caio Fernando Abreu e outros. Naquela noite - inesquecível e até hoje de Catequese Poética - Bell declamou o Poema das Crianças Traídas: “Eu vim da geração das crianças traídas. Eu vim de um montão de coisas destroçadas. Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu. Eu fui à tarefa num tempo de drama. Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado... Eu sou a geração das crianças traídas. Eu tenho várias psicoses que não me invalidam...” Trocávamos, vez por outra, cartas datilografadas. Eu as guardo até hoje. A última carta que recebi é datada de 11 de maio de 1991 e nela Lindolf Bell escreveu: “De muitas maneiras, (e não tantas neste país), as pessoas resistem no ofício.” Verdade. Não podemos ser menores que os nossos sonhos. Lindolf Bell morreu jovem, em 1998, aos 60 anos de idade. Hoje, 16 de maio de 2024, faleceu o poeta e jurista Péricles Prade, elo imortal do poema das crianças traídas.   

João Scortecci
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OLGA SAVARY, REVISTA LB DE LITERATURA E O POETA BILA

A escritora, tradutora e poeta Olga Savary nasceu em Belém, do Pará, em 21 de maio de 1933, filha de engenheiro russo e mãe paraense. Para Olga eu era o “Bila”, bolinha de gude, no Nordeste brasileiro. Dizia, sempre: Você é o bila! Olga Savary morou em Fortaleza, minha terra natal, durante muitos anos. Lá - brincando com os meninos de rua - conheceu o jogo. Quando leu o meu livro de poesias “Na Linha do Cerol - reminiscência poéticas”, lembranças da minha infância no Ceará dos anos 1960, adotou o apelido, de vez. Conhecemo-nos no estúdio do editor de livros Massao Onho (1936 – 2010), através da atriz e roteirista pernambucana Aurora Duarte (Diva Mattos Perez, 1937 – 2020), que ocupava uma sala, nos fundos da editora, na Rua Conselheiro Ramalho, na Bela Vista, em São Paulo. Olga morava no Rio de Janeiro. Quando estava em São Paulo, hospedava-se na casa do escritor, roteirista e empresário Fábio Porchat, autor da Scortecci e pai do ator, produtor e humorista Fábio Porchat. Olga, autora premiada, publicou 15 livros de poesia, entre eles, Sumidouro (1977); Magma (1982); Hai-Kais (1986); Berço esplendido (1987); Retratos (1989) e Repertório Selvagem (1998). Traduziu mais de 40 obras, de mestres hispano-americanos, entre eles, Borges, Cortázar, Carlos Fuentes, Lorca, Neruda, Octavio Paz, Jorge Semprún e Mário Vargas Llosa, e os mestres japoneses do haicai - Bashô, Buson e Issa. Outro dia, no início do ano de 2024, sua filha Flávia Savary, com o cartunista Jaguar, enviou-me de presente pelo correio a coleção completa da Revista LB – Revista da Literatura Brasileira, direção do poeta e advogado Aluysio Mendonça Sampaio (1926 – 2008), autor da Scortecci com 4 livros publicados, revista que durante muitos anos foi impressa na Gráfica Scortecci. Tesouro valioso, hoje parte do memorial da editora. Olga Savary faleceu na cidade de Teresópolis/RJ, no dia 15 de maio de 2020, aos 86 anos de idade.

João Scortecci


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O FENEMÊ, JOHN WAYNE E O CAVALO CARAMELO

Quando criança – isso no Ceará dos anos 1960 – ganhei de presente um caminhão com caçamba. Naquela época andava explorando os quintais da Vila Santa Terezinha, procurando não sei bem o quê. Um tesouro, talvez. O caminhão com caçamba foi o único presente “diferente” que ganhei quando criança. “Filho, o que você vai querer de presente de Natal?” A resposta era a mesma de sempre: “Dois revólveres com cartucheiras do John Wayne e muita espoleta estrela”. O caminhão com caçamba era uma réplica perfeita de um "Fenemê", da Fábrica Nacional de Motores, fundada em 1942 pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo Cel. Antônio Guedes Muniz, pioneiro da indústria aeronáutica brasileira. É dessa época, também, a fundação de várias estatais brasileiras, com dinheiro americano, durante a Segunda Guerra Mundial: Companhia Siderúrgica Nacional (1941), Companhia Vale do Rio Doce (1942), Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945), entre outras. Com o fim dos dólares, a Fábrica Nacional de Motores, orgulho nacional, encerrou as atividades em 1977. Gosto da história da carroça e do jumento. Oportuna e de autor desconhecido. Aos 30 anos de idade, carroça e jumento são únicos: Indivisíveis. Nada fica para trás: tudo vai para a caçamba. Aos 40 anos, tornamo-nos seletivos e prudentes. Algumas coisas são simplesmente deixadas de lado e nem tudo vai, automaticamente, parar na caçamba da carroça. Aos 50 anos, tornamo-nos chatos, criteriosos, detalhistas e vaidosos. Alguns: insuportáveis! Quase nada mais vai para a caçamba, já lotada até a tampa. E o jumento, pobre de nós, já não é o mesmo: envelheceu, de vez. É a década das escolhas ruins, dos milagres e das fraquezas humanas. Aos 60 anos, inesperadamente, chega-se, afinal, à década do desapego. E da cura, para muitos. Hora do descarte, da reciclagem, da arrumação de papéis, do arquivo de fotos, de retirar da caçamba entulhos, engodos e fantasmas. Hora, também, de aliviar o jumento do peso cruel e poupá-lo do pior. Aos 70 anos – estou quase lá – o “Fenemê”, vez por outra, engasga e solta pelas narinas enxofre e chiados. Confesso: não esperava viver tanto. Sorte? Talvez. A história da carroça e do jumento termina, para muitos, por volta dos 80 anos, década da morte, já que poucos chegam aos 90 anos ou mais. É quando surge o dilema da vida: abandonar a carroça ou salvar o jumento, mesmo que por pouco tempo. Acompanhei, pela TV, o resgate do Cavalo Caramelo, ilhado no telhado de uma casa submersa, na tragédia que assola o estado do Rio Grande do Sul. Caramelo, carinhosamente assim apelidado, permaneceu firme, ali, imóvel, de pé, faminto, aguardando ser resgatado com vida. Foi corajoso, paciente e confiante. Caramelo, guerreiro e brasileiro, sempre.

João Scortecci

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NO DIA DE ONTEM

Algo no ar no dia de ontem. No dia de hoje: tudo igual, estranheza que se repete. Déjà vu? No escuro da porta do quarto observo o vazio de janela entreaberta. Calor dos infernos. Lamparinas no balanço do fio de cordas e brisa de morte. Observo: cabide no chão, camisa suja de sopa de palmito e dor inglória, nos ossos. Rosto na cunha do avesso do espelho. Reflexos e seus pêndulos! Sombras da noite, talvez. Almas que se curvam no tempo. É o que arde e coça. Sapato preto, sem meias. Hora do mijo. Urinar-me! Suor azedo e incolor, cheiro de pele e dama da noite. Abajur francês, alguns livros, mesa de mogno e talheres de aço. Sujos. O que se esconde na rua de fora? Barulho incolor - talvez - e nada mais. Desconfio: lua de Vênus ou cadela no cio? Miudezas que passam. Eu espero o sino já visto. O sol sabe de mim. 

João Scortecci


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TODO POETA É INVARIAVELMENTE IMORTAL

Das inferências da palavra. Na poética: conclusões e ilações do verbo! A lógica aristotélica (Aristóteles, 384 a.C.- 322 a.C.) tem como objetivo estudar a relação do pensamento com a verdade. Em “Organum” - nome dado ao conjunto das obras sobre lógica de Aristóteles - que significa “instrumento” as ferramentas para analisar se os argumentos utilizados nas “premissas” levam a uma conclusão coerente. Há quem duvide! Define, ainda - nas inferências - que a razão implícita do verbo é proposição das emoções do coração. Na poética - aquilo que se propõe - é silogismo: forma de raciocínio baseada na dedução. Os juízos (des)encadeados da dor, são conexões de proposições: indutivas e dedutivas. Isso – talvez – explique, um pouco, sobre os poetas. “Todo imortal é poeta. Logo todo poeta é imortal.” Algo assim.

João Scortecci


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DAS INOCÊNCIAS DE MENINO

Uva era raridade na infância, isso no Ceará dos anos 1960. Um dia – inevitavelmente – aconteceu ter que provar do fruto da videira. Confesso: provei e não gostei. Hoje, continuo não gostando. Uva e morango são frutas que não fazem o meu gosto. Acontece. Papai Luiz - eufórico – chegou e disse: Ganhamos um cacho de uva moscatel! Presente de um amigo de São Paulo. Cadê? Subimos na Rural Willys e fomos até o Pinto Martins, aeroporto de Fortaleza. A preciosidade chegou de jato Caravelle, pela Cruzeiro do Sul. Menino, cuidado, tem caroço! Foi o que disseram. Não engole que dá apendicite. Nó nas tripas! Prova e depois – se não gostar – cospe longe. Foi o que fiz. Disse: tem gosto de pitomba! Uva é iguaria de reis e rainhas e custa o olho da cara. Verdade? Registrei. Guardei, então, os caroços da sorte, num guardanapo. Coloquei as sementes para secar, no batente da janela, e depois, plantei, caroço por caroço, no terreiro do latifúndio da Vila de Santa Teresinha, na sombra do pé de graviola. Dia sim, dia não aguava e cutucava a terra com um pedaço de pau. Nada de brotar pé de uva. No silêncio da espera, arranquei tiriricas e acossei saúvas, formigas da bunda grande. Papai sabia que eu plantei uva no quintal? Uva? Ele me olhou e sorriu. Quando nascer você me avisa! Disse. A ideia de menino empreendedor era cultivar uvas e ganhar - muito - dinheiro. Ficar rico! Papai - brincalhão que só ele – todos os dias, dava corda. Mexia com a inocência do seu filho caçula. Foi assim que me ensinou – muitos segredos - sobre a vida. Dizia sempre: a vida é injusta e desleal. Risos. Filho, já nasceu o pé de uva? Não. Demora. Mãe, na fazenda de Dois Córregos, o vovô José Scortecci cultivava uva? Perguntei. Não. Cafezal e Granja. Filho! Pé de uva não nasce do caroço. Você precisa de mudas ou de um tipo especial de semente. Explicou. Nasce sim! Protestei. Nasce não! Insistiu. Papai ficou até de comprar - toda - a produção de uva do ano. Argumentei. Teu pai está “zoando” você. Está não! Vou ser agricultor e ficar rico, comercializando uva no Ceará. Foi quando Papai "percebeu" que a brincadeira havia ido longe demais. Filho pé de uva não nasce do caroço. Confessou. Quer um conselho de pai? Não. Respondi. Mesmo assim Papai sentenciou: Você vai morrer de fome! Meu sonho de agricultor e de ficar rico, durou pouco. Tinha, também, planos de cultivar cebolas. Havia lido no jornal que no Sul do país a safra, naquele ano, estava comprometida devido o excesso de chuvas. Na época, no Ceará, vivíamos um período de secas. Nada mais justo que explorar a oportunidade, pensava. Desisti de vez quando vi na enciclopédia Barsa a foto de um pé de cebola. Foi frustrante. Na minha inocência de menino empreendedor, jurava que as cebolas no pé davam em cachos, tranças, em réstias, iguais as que habitavam o prego da dispensa, que ficavam penduradas atrás da porta do tempo. Papai tinha razão: eu ia mesmo morrer de fome. 

João Scortecci


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O PRÍNCIPE MAQUIAVEL, PAPAI NOEL E RALF DAHRENDORF: ERROS SE CONSERTAM!

Li o “O Príncipe” do poeta e filósofo fiorentino Nicolau Maquiavel (1469 - 1527) nos anos 1972 e reli - no início dos anos 1982 - quando por alguma razão estudava o assunto “indivíduos na sociedade: papel social” e o conjunto de normas, direitos, deveres e explicativas, que condicionam o comportamento dos indivíduos junto a um grupo ou dentro de uma instituição na obra do sociólogo alemão Ralf Gustav Dahrendorf (1929 - 2009). Aqui fica o registro: Dahrendorf é o “cara”, aquele que me salva quando Maquiavel me tira o sono. Os políticos – todos, sem exceção - adoram seguir sua cartilha de malvadezas e estratagemas. A lista de “sentenças” de Nicolau Maquiavel - Papai Noel do saco roxo - é extensa e digna de pesadelos. Aqui cabe outro registro: “pesadelo é para quem está devendo!” Maquiavel, anda profícuo e mais atual do que nunca. Algumas máximas do príncipe florentino: “Faça de uma vez só todo o mal, mas o bem faça aos poucos.” “O que depende de muitos costuma não ter sucesso.” “Nunca faltarão ao príncipe razões legítimas para burlar a lei.” “Um governante eficaz não deve ter piedade.” “É mais seguro ser temido do que amado.” E a mais cruel de todas: “O príncipe político que desejar ter sucesso em seu empreendimento deve partir da regra de que as pessoas são más e que na primeira oportunidade elas demonstrarão essa maldade, geralmente traindo o seu superior.” É quando tudo está “quase perdido” que Ralf Gustav Dahrendorf – o salvador - me acolhe por dentro e fala com o que de melhor plantou no meu coração selvagem: "Nada mais antiliberal que a utopia, que não deixa lugar para o erro e nem para a correção". O que faço? Continuo acreditando nos indivíduos em sociedade - na democracia - e no conjunto de normas, direitos e deveres de um povo justo e fraterno. Erros se consertam! Defeitos se corrigem! O perdão salva! Papel Noel não existe, mas faz falta, vez por outra.

João Scortecci


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LEI CORTEZ NA BERLINDA

Eu sou um inocente, apinhado de pecados! Tenho defeitos que nem eu mesmo suporto. Tento corrigi-los, mesmo que em vão. Faz parte. Aqui com os – quase – 70 anos: e pensar que ninguém neste mundo seria contra o livro e os benefícios da leitura. Repito: sou um inocente.

Já não é de hoje que nos assustam as palavras “lei”, “norma”, “regra”, “regulação” e muitas outras que orbitam nas nossas vidas. É bem conhecida a frase "A lei, ora, a lei", atribuída ao Presidente da República Getúlio Vargas (1882 – 1954), durante o seu segundo mandato. Existem outras pérolas, também incorporadas à alma do povo: “O Brasil já tem leis demais”; “Essa lei não vai pegar”; “Lei Caracu”; “Lei para inglês ver” etc. Hoje, grande parte das mais de 37 mil leis existentes no Brasil, aguardam regulamentação, total ou parcial, dificultando e prejudicando finalidades e propósitos. Esse é um dos muitos motivos da máxima: “Não somos um país sério”, dita no início dos anos 1960 pelo diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho (1901 – 1990) ao jornalista cearense Luís Edgar de Andrade (1931 – 2020), à época correspondente do “Jornal do Brasil”, em Paris, no contexto do incidente diplomático conhecido como “Guerra da Lagosta”. 

Deixemos de lado a lagosta, as conversas “para inglês ver” e a máxima de Getúlio Vargas: "A lei, ora, a lei". O assunto desta nota é a “Lei do preço fixo” ou “Lei do preço comum”, rebatizada de “Lei Cortez”, em homenagem ao editor e livreiro José Xavier Cortez, que faleceu em 2021 e é responsável por um importante legado na história do livro no Brasil. Essa lei foi proposta no Projeto de Lei 49/2015, pela então senadora Fátima Bezerra, hoje governadora do estado do Rio Grande do Norte. A inspiração veio da “Lei Lang”, em vigor na França há mais de 40 anos. O projeto – desengavetado em maio de 2023 – visa regulamentar o comércio varejista de livros e proteger as livrarias – principalmente as pequenas – de concorrência predatória. A “Lei Cortez” conta com o apoio institucional das principais entidades do livro no Brasil: ANL – Associação Nacional de Livrarias; CBL – Câmara Brasileira do Livro; SNEL – Sindicato Nacional dos Editores de Livros; ABRELIVROS – Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais; ABDL – Associação Brasileira de Difusão do Livro; e ABIGRAF – Associação Brasileira da Indústria Gráfica, entre outras. 

De acordo com o PL 49/2015, o preço de capa – sugerido pela editora – deve ser respeitado pelo período de 1 ano, a contar da publicação ou lançamento do livro, podendo os canais de comercialização praticar o preço de capa, oferecendo, no máximo, desconto de até 10%, sobre o preço sugerido. Os livros didáticos e importados ficam de fora dessa regra. Os favoráveis ao projeto de lei defendem que o instrumento poderá proteger as pequenas e médias livrarias, salvaguardando a diversidade e combatendo a guerra por preços e descontos. Os contrários não são poucos. O principal motivo, generalizando, é o desconhecimento do projeto de lei, julgando tratar-se de um tipo de congelamento ou imposição de preço tabelado e, ainda, apostando no encarecimento do preço de capa do livro, o que não é verdade. As editoras e livrarias – maiores interessadas em que esse projeto de lei seja aprovado – manteriam o preço de capa abaixo do sugerido, não agregando “gordura” no jogo insano dos descontos e da guerra de preços, proporcionando, assim, equilíbrio e preço justo ao mercado e a toda cadeia produtiva do livro. 

Aqui cabe explicar o que disse na introdução desta nota: “Sou um inocente, apinhado de pecados!”. E pensar que o mercado livreiro e a imprensa, em especial, tomariam ciência do assunto e compreenderiam a importância da Lei Cortez para toda a cadeia produtiva do livro. A lei, ora, a lei, para brasileiro ver.

João Scortecci


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DAS COISAS RECENTES DA HORA

Vou até lá e volto logo! De pronto, no automático. Coisas do instante “novo” e muito recente, do agora. Rápido e incomum. Aconteceu e pronto, passou, no único espaço de existência possível. Agora - que tudo se foi - não adianta mais ter pressa! Nada do que é recente acontece do passado. Seria o futuro inexistente? Talvez. Foi assim no primeiro dia, depois e em todos os outros, também. Andei - por nada e a toa - listando as coisas do recente e pude, então, observar que não há razão alguma nas brevidades do tempo. Não há segredos. E nem ansiedade. Não há surpresas e eu levo um susto “dos cabelos”. Dos poucos que ainda restam. Silêncio temporal. Isso existe? Não há o que temer e logo o suor das coisas vão gelar os ossos do corpo. Eu disse que voltaria: vou até lá e volto logo! Foi o que fiz. O fato de ter voltado, agora, pouco importa. Sou do acaso. Da vontade incomum. Andarilho. Dono do grito da boca das palavras miúdas. No aconchego do repente - ouço vozes – a minha? Talvez. E no melhor das coisas recentes: adormeço. Eu e o relógio que adianta - por nada, por teimosia, por morte na parede do finito. O que faço? Troco as pilhas, dou corda na geringonça, aguardo a vontade do vazio ou espero. Já disse: Vou até lá e volto logo! Demoradamente. 

João Scortecci


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MANABU MABE: SAQUÊ, SUSHI E TENUGU

O pintor, desenhista e tapeceiro japonês naturalizado brasileiro, Manabu Mabe (1924 – 1997), teve 53 de suas obras, avaliadas em mais de 1,2 milhão de dólares, perdidas no mar, no dia 30 de janeiro de 1979, quando o Boeing 707, cargueiro da companhia aérea brasileira Varig, desapareceu sobre o oceano cerca de 30 minutos após a decolagem do aeroporto de Narita, em Tóquio, com destino ao Rio de Janeiro. O acidente é conhecido por ser o maior mistério da história da aviação até os dias de hoje. Conheci Manabu Mabe no ano de 1978, um ano antes do acidente aéreo com parte de sua coleção de quadros. Na época, eu trabalhava no Departamento Comercial da FK Equipamentos para Escritório, empresa de Yujiro Furusho, no bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo. Eu tinha 22 anos de idade e sonhava em ser escritor, editor e gráfico. Não sabia quem era Manabu Mabe e o quanto era famoso, respeitadíssimo, principalmente na comunidade japonesa. Yujiro Furusho me procurou no final do expediente e fez o convite inesperado: “Você já comeu sushi?”. “Não”, respondi. Entramos num táxi e fomos até um restaurante japonês, na Liberdade. Eu era o único “estrangeiro” na casa. Um senhor oriental, cinquenta e poucos anos, nos aguardava numa mesa de canto, bebendo saquê, bebida alcoólica fermentada tradicional do Japão. Provei e gostei. O garçom trouxe tenugu – toalha de mão de algodão – pegando fogo. Desconfiado, aguardei a vez. Yujiro e Mabe esfregaram a toalha no rosto, no pescoço e nas mãos. Educadamente esperaram por mim. Exagerado que sou, esfreguei a tenugu no rosto, no pescoço e nos braços. Sensação maravilhosa. Banho completo! Do nada, começaram a chegar pequenos pratos, com três porções cada. Foi a minha primeira vez num restaurante japonês. Gostei da brincadeira. Yujiro e Mabe misturavam na fala português e japonês. O que eu não entendia passava batido. Coisas do saquê. Já tarde da noite, Mabe me perguntou o que eu queria fazer da vida. “Quero escrever e publicar livros”, respondi. Manabu Mabe, então, começou a falar do seu trabalho e não parou mais. Um mestre. Iluminado. Fomos embora tarde da noite. No dia seguinte fui procurar saber quem era Manabu Mabe. Levei um susto. Quase morri do coração! “Patrão, o cara é famoso!” Yujiro, então, me disse: “Eu sabia que você ia gostar dele”. Ficou o sushi. Vez por outra lembro de Manabu Mabe, do porre de saquê e das toalhas de tenugu no rosto, no pescoço e nas lembranças do tempo.

João Scortecci


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PECADO NO PORTÃO DA ADOLESCÊNCIA

Ganhei uma foto sua do tempo de sexo no portão do escuro da adolescência. É a primeira coisa lembrada que você me pediu de memória. Você disse: guarda e vai! E eu, então, parti. Na despedida - veloz e apressada - guardei a foto da nossa história de amor na caixinha dos pecados. Hoje, mexendo na sorte do coração, nos encontramos, novamente. Éramos eternos! E pensar que não tínhamos paciência alguma (e precisava?). Tudo era bom como era. O portão de ferro gemia seco de óleo e você - docemente - respirava o gozo de menina-moça. E nada mais. 

João Scortecci

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KARL KRAUS, O PANFLETÁRIO DO PAPEL

Gosto da palavra “panfleto”, o que ela representa e de sua importância na divulgação em massa de uma ideia ou marca. Um sobrevivente: prático e funcional, em tempos de mídia eletrônica. Quem não gosta de um panfleto de rua? Eu adoro. Digo o mesmo dos cartões de visita: insubstituíveis! Alguns – pobres de espírito – chamam-no de folheto. Um folheto é um panfleto que não deu certo: tempo, papel e tinta perdidos! Os panfletos são revolucionários, criativos, irados de ideias, poesia e paixão. No século XII, circulou na Inglaterra um poema de amor escrito em latim, com o nome de “Pamphilus seu de amoré”, anônimo, que se tornou popular e foi traduzido para inglês como “Phamphlet”. Até os fins do século XIV a palavra “Phamphlet” era usada em inglês para designar qualquer texto pequeno, de tamanho menor do que os enormes livros manuscritos daquela época, antes da invenção da imprensa. O dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco Karl Kraus (1874 – 1936), indicado duas vezes ao Nobel de Literatura, é considerado como um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX e um panfletário “casca de ferida”. Editor e único redator durante quase 40 anos da revista “A Tocha” (“Die Fackel”), denunciava com grande virulência a corrupção da língua, responsabilizando principalmente a imprensa da época. Karl Kraus, filho de um rico fabricante e comerciante de papel, viveu para seus escritos e organizou sua vida em torno de seu trabalho de editor, escritor e panfletário. Durante a vida, tomou posições liberais, conservadoras, socialistas e clericais. Tornou-se membro da Igreja católica, mas abandonou o catolicismo em 1922, vinte e três anos depois que, da mesma forma, renunciou ao judaísmo. Em 1933, escreveu a sátira “A Terceira Noite de Walpurgis” (“Die Dritte Walpurgisnacht”), sobre a ideologia nazista, que começa com a famosa frase, "Mir fällt zu Hitler nichts ein" ("Nada me ocorre sobre Hitler."). Karl Kraus morreu em Viena, em 12 de junho de 1936, aos 62 anos de idade, depois de ter sido atropelado por um ciclista. Para Karl Kraus, a linguagem era o desenvolvedor mais importante dos males do mundo: “que a mais antiga das palavras seja estranha de perto, recém-nascida, e cause dúvida se está viva ou não. Então ela vive!”.

João Scortecci


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ADRIANO NOGUEIRA E OS REGISTROS LITERÁRIOS

O tempo é veloz! Rosani Abou Adal ligou para mim, convidando: “Scortecci, você não quer escrever para o jornal uma nota sobre os 20 anos da morte do Adriano Nogueira?” Confesso que, antes de dizer “sim”, assustei-me com a velocidade do tempo: 20 anos! Inacreditável! O advogado e escritor Adriano Nogueira nasceu no dia 8 de setembro de 1928, na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo. Faleceu em 2004, aos 76 anos de idade. Em 1989, foi um dos fundadores, junto à jornalista e escritora Rosani Abou Adal, do jornal Linguagem Viva.

Aproximamo-nos, Adriano Nogueira e eu, durante a realização do I Concurso de Poesias Linguagem Viva, em 1993, quando editamos os 30 poemas classificados em uma antologia publicada com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, União Brasileira de Escritores e Scortecci Editora. Em 1998, a Scortecci Editora publicou o seu livro Registros Literários, seleta de artigos da coluna “Efemérides Literárias”, em que Adriano Nogueira resgata parte da memória de escritores piracicabanos: Almeida Fischer, João Chiarini, Thales de Andrade, Mário Neme, Cecílio Elias Netto, Lino Vitti, Francisco Lagreca, Ortiz Monteiro, David Antunes, Léo Vaz e João Baptista de Souza Negreiros Athayde.

Registros Literários foi prefaciado pelo escritor cearense Caio Porfírio Carneiro, na época secretário-geral da UBE – União Brasileira de Escritores, que assim descreve Adriano Nogueira: "Piracicabano de nascimento de residência a vida inteira, fez o que achou justo: reuniu no livro, em grande parte dele, retratos e registros de figuras e obras dos filhos da terra, que deixaram notável legado para o Estado e o País." 

Adriano Nogueira foi também Secretário da Academia Piracicabana de Letras e Diretor da União Brasileira de Escritores, em várias gestões. Em 1990, recebeu o troféu Mirante, destinado ao destaque cultural do ano de 1990, em Piracicaba. E, nessa cidade, foi um dos fundadores do Diretório Municipal do Partido Socialista Brasileiro, junto ao professor e um dos mais importantes folcloristas brasileiro, o piracicabano João Chiarini (1919 – 1988).

Sensível e inesquecível, Adriano Nogueira nos deixou importante legado sobre a literatura e a cultura piracicabanas. Nas "Efemérides Literárias", ajudou a escrever parte das histórias do jornal Linguagem Viva, hoje memorial da literatura brasileira. No livro Registros Literários, perpetuou-se, registrando com sabedoria e inteligência, traços da história da literatura brasileira.

João Scortecci


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